Caros amigos e amigas,
É lamentável, mas a reserva de vagas para pessoas com deficiência em
concursos públicos, estabelecida na legislação brasileira desde a década
de 90, ainda é vista como favor por grande parte da sociedade e,
inclusive, pelos empregadores públicos. Tal medida, entretanto, é
perfeitamente compatível com o princípio da igualdade, que prevê
tratamento diferenciado a quem tem um diferenciado grau de dificuldades.
Sempre que ouço manifestações de menosprezo a quem entra no serviço
público pela reserva de vagas, ou mesmo por outros segmentos da
sociedade, como os cotistas de universidades, penso na carga de
incompreensão e ignorância que está arraigada nesse tipo de
entendimento. E como a luta pelo esclarecimento é dura e demorada (Lulu
Santos descreveria com precisão a situação: a passos de formiga e muito
sem vontade), vejamos uma historinha que pode ilustrar o assunto.
Em um belo dia o jovem Armando, deficiente visual, universitário, que
trabalha em uma empresa da iniciativa privada, recebe a notícia da
publicação de um edital para o concurso de analista da receita federal.
Como falta pouco para sua formatura, resolve prestar o concurso. Depois
da decisão, comenta com seu colega de trabalho, Pedro, que também é
universitário, mas não tem deficiência alguma. Pedro também decide
realizar as provas. Antes do almoço daquele dia, ambos verificam os
conteúdos cobrados no certame.
Na hora do intervalo, que é longo o suficiente para um almoço calmo, com
sobra de alguns minutos para relaxamento, Pedro dirige-se à biblioteca
da universidade na qual estuda, que fica próximo do seu trabalho. Lá,
tem a possibilidade de escolher, imediatamente, pelo menos cinco livros
das matérias em que mais tem dificuldade: direito administrativo,
direito constitucional e raciocínio lógico. Sai com seus livros embaixo
do braço e, no final da tarde, dentro do ônibus que o leva para casa, já
começa seus estudos rumo ao cargo pretendido.
Armando não tem a mesma sorte. Também tem acesso à biblioteca da
universidade e pode pegar os mesmos livros que Pedro, mas não conseguirá
lê-los, por ser cego. A sua escolha, tem três opções: pedir para um
amigo gentil que digitalize seus livros, para que possa lê-los no
computador, pagar por esse serviço para alguém disposto a fazê-lo ou
digitalizar por conta própria todo o material. Em todos os casos, para
que Armando consiga ler o primeiro dos livros, precisará esperar, no
mínimo, cinco dias.
Passam-se os cinco dias e Pedro, de boa fé, vem comentar um tópico de
direito administrativo com Armando, que, desapontado, precisa explicar
que ainda não começou a ler nenhuma linha dos seus materiais. E que o
primeiro livro a ficar pronto, por ser o menor, será o de raciocínio
lógico, não o de direito administrativo.
Na semana derradeira antes das provas, Pedro terá lido e revisado todo o
seu material, e Armando ainda estará esperando os últimos capítulos que
necessita. Além daqueles livros da biblioteca da universidade, Pedro
comprou diversos outros, tirou cópias de livros emprestados por colegas
e, nos tópicos de maior dificuldade, pesquisou em múltiplas fontes para
fixar o conteúdo. Nem que Armando quisesse, conseguiria fazer o mesmo.
Ambos prestam as provas e ambos passam. Armando, pela reserva de vagas,
fez 65% do total das questões da prova; Pedro acertou 80% e conseguiu
entrar pela concorrência ampla. No dia da prova, inclusive, Armando
precisou perder meia hora do seu tempo, porque suas provas escritas em
braille foram trocadas com as de outro candidato cego.
Considerando as condições completamente diferentes para Pedro e para
Armando, qual dos candidatos você acha que foi melhor no concurso? A
distância de pontos entre os colegas é proporcional à diferença de
possibilidades de estudos para um e para outro? Para que atingissem o
mesmo desempenho, Pedro e Armando não precisariam das mesmas condições?
Para que haja justiça, não é evidente que Armando precisa concorrer com
quem tem as mesmas condições que ele?
Essas perguntas e suas respostas ficam como reflexão. Armando e Pedro,
hoje, trabalham na Receita Federal; Pedro tem um cargo de chefia.
Armando trabalha tanto quanto Pedro, mexe nos mesmos sistemas do órgão e
atende contribuintes, mas seu chefe pensa que ele não pode assumir
cargos de confiança porque não tem condições de assinar documentos
públicos, embora isso não seja verdade.
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